Música: formadora do senso crítico ou alienadora?

ARTIGO
Música: formadora do senso crítico ou alienadora?

Por: Rogério Grossi de Britto (14/06/2016)

A capacidade do homem em desenvolver seu senso crítico é o fundamento da História. Mas ao contrário do senso comum, o senso crítico se constrói por força de nossas experiências como a educação que recebemos em casa e na escola. Também compõe a construção do senso critico tudo aquilo que nos circunda como o que assistimos, lemos ou ouvimos. Nossas amizades, a comunidade em que vivemos e a forma que nos inserimos e reagimos a ela.
 Aceitar o senso comum se coloca de forma extremamente fácil na vida de todos nos uma vez que estamos acostumados a acolher os pensamentos prontos, as questões já respondidas, os problemas solucionados e de nos adaptar até as piores das situações. Isso é facilmente observado nos maiores sucessos da música e demais mídias atuais.
Na contemporaneidade um bom exemplo de acolhimento ou opção pelo senso comum se dá nos debates políticos que podemos presenciar diariamente nos diversos ambientes em que convivemos. Conversas rasas, sem fundamentação ou reflexão e nenhuma perspectiva ou possibilidade despertar o raciocínio crítico dos interlocutores ou de somar ao pensamento alheio.
Ainda dentro desse tema percebemos na música um grande instrumento que pode levar tanto a reflexão – mãe do senso crítico – como a alienação. A banalização de temas importantes para a formação da sociedade, a excessiva exploração e banalização da sensualidade são fatores que, se somados a nossa estrutura social – a qual não tolera o raciocínio crítico dos indivíduos e exalta a aceitação do comportamento uniformizado de massas - contribuem para a alienação do receptor ou cidadão.
O Funk: gênero musical que se originou nos Estados Unidos na segunda metade da década de 1960, quando músicos afro-americanos, misturando soul, jazz e rhythm and blues, criaram uma nova forma de música rítmica e dançante (01). No entanto, assim como basicamente tudo o que envolve o cotidiano das massas, o Funk não escapou do mote comercial onde, na década de 80, surgiram diversas subdivisões desse estilo musical até se chegar, no Brasil, ao Funk Carioca.
O funk carioca é um estilo musical oriundo das favelas do estado do Rio de Janeiro onde apesar do nome, é diferente do funk originário dos Estados Unidos. Isso ocorreu a partir dos anos 1970, onde começaram a ser realizados bailes da pesada, black, soul, shaft ou funk.. Com o tempo, os DJs foram buscando outros ritmos de música negra, mas o nome original permaneceu. O funk carioca tem uma influência direta do miami bass e do Freestyle no entanto este também possui em  seu ritmo batidas repetitivas sincopado. (02)
O funk carioca, basicamente ligado ao público jovem, tornou-se um dos maiores fenômenos de massa do Brasil. Na década de 1980, o antropólogo Hermano Vianna foi o primeiro cientista social a abordá-lo como objeto de estudo, em sua dissertação de mestrado que daria origem ao livro O Mundo Funk Carioca (1988).[03]
Massivamente o Funk Carioca é conhecida por possuir, além das já citadas características acima mencionadas, letras que expressam desde o cotidiano das classes operárias a assuntos ligados a sexualidade e ao crime, porém assim como o samba, também sofre forte discriminação.
O Funk, assim como o samba – que inclusive já fora proibido no Brasil por ser considerado música de baixa qualidade intelectual e constantemente vinculado a violência (05) – vem despertando em certa parcela da sociedade reações pré-concebidas. “Uma parcela da sociedade, normalmente as classes média e alta, costumam associar tudo o que se insere no cotidiano popular a negatividade da vida. Assim fizeram com o samba no passado. Assim fazem hoje com o funk. Porém, em boa parte das festas e comemorações de todas as classes sociais é extremamente comum a presenças de ambos os ritmos o que torna difícil a compreensão dessa fatia da sociedade brasileira que separa com muita facilidade a fala da ação...(07)”
O fato esse que podemos explicar se observarmos justamente as questões comerciais e os interesses de parte da indústria da cultura a qual não demonstra interesse em promover ações artísticas que vislumbrem estimular o espírito crítico e dessa forma temos como resultado uma gama de conteúdos musicais de “gosto” questionável e baixo conteúdo intelectual transformando em regra o que poderia ser exceção e subjugando todo o resto. 
Prova disso foi dada recentemente por estudantes secundaristas que foram retirados a força e sem ordem judicial, pela Polícia Militar, de escolas as quais ocupavam em ato de protesto contra o famoso escândalo do “Merendão” (08) onde logo após serem fichados por infrações como dano ao patrimônio público, furto e invasão, e liberados, reagiram demonstraram em tom espirituoso que irão continuar os protestos contra a falta de merenda e as denúncias de corrupção envolvendo o governo de Geraldo Alckmin (SP) na composição de um Funk "Não acabou; Tem que acabar; Eu quero o fim da Polícia Militar; Com a cara de mal; com a bomba de gás; de efeito moral. Não vai ter arrego; vai ter consciência; vai ter resistência; mas sem violência", dizem os estudantes.
Em seguida o grupo manda uma sugestão para o governador Geral Alckmin: "Uma pedida para Geraldo: tira a tesoura da mão; Para de roubar merenda e investe em Educação", cantavam os estudantes que ainda aproveitaram para mandar um recado aos pais: "Mãe; pai; to na ocupação; E só pra tu saber eu luto pela educação. Mãe; pai; eu to no camburão; e só pra tu saber eu luto pela Educação". (09)
                Esse exemplo de protesto na forma de música é a expressão criativa de uma reflexão. É o pensamento crítico que toma voz na forma de arte e de arte popular talvez mais pura e espontânea. Exemplos como esse não são poucos. Embora pouco difundido pelos meios convencionais de comunicação como rádios e emissoras de TV, a música de protesto tem forte tradição no Brasil, mas com maior incidência nos estilos de música que normalmente são discriminados e tidos como “subversivo”
O samba nos traz riquíssimos exemplos nesse sentido. Durante a ditadura militar, quaisquer expressões contrárias ao regime corriam o risco de serem censuradas. Nas artes, a música foi um grande alvo. Mesmo assim, muitos compositores e intérpretes não se calaram e, por meio de poesia, cantaram pela liberdade, pela melhora das condições de vida da população e a repressão do governo.
O sambista, músico e compositor Zé Keti, em 1965, compôs “Acender as Velas” onde dizia que o ato de acender as velas, praticado em velórios, se torna profissão nas favelas devido a falta de condições de vida “Acender as velas; Já é profissão; Quando não tem samba; Tem desilusão; É mais um coração; Que deixa de bater...”(10). Chico Buarque, por sua vez, em sua imensurável coleção de músicas que nos colocam a par de realidades que muitas vezes desconhecemos também nos leva a refletir temas que apesar de cotidianos são muitas vezes ignorados. Em 1970 era composto “Apesar de Você” com uma forte letra contra o regime militar (11).
Outros tantos exemplos podem ser encontrados em todos os gêneros musicais como no Hip Hop de Gabriel o Pensador que também possui uma infinidade de músicas tidas como de protesto como “Até Quando?”, “Chega”,  “Racismo é burrice”, entre tantas outras que retratam um  universo de temas. Dou nesse texto um destaque especial para a música “Mário”  - ...Missionário sem religião (sem religião!), conquistou uma legião, uma multidão, na sua missão contra a omissão em todos os cenários:; urbanos, suburbanos e agrários.; Mas o seu discurso igualitário foi ficando cada vez mais duro, mais maduro, incendiário!; Incomodando os poderosos e reacionários, que já queriam ver seu nome no obituário.; Mas o Mário tava em todos os noticiários, nas escolas, nos "campus" universitários, nas favelas, nas bocas, nas bancas, nas ruas, nas fábricas, em todos os lugares! - E o Mário rebate qualquer argumento contrário ao seu ideário.; Debate com qualquer político, autoridade ou autoritário; do executivo, do legislativo ou judiciário; latifundiário ou megaempresário; qualquer mercenário do Fundo Monetário...; Ninguém nesse mundo é páreo pro Mário!; E o Mário, que era só um João Ninguém, leu, escreveu, conheceu e foi reconhecido.; Cansou de ser otário. E pra quem ta cansado também, o Mário é um exemplo a ser seguido... (12) e “Brazuca” onde o compositor, se utilizando da “paixão” do povo pelo futebol, traça um paralelo entre um trabalhador comum e um astro do futebol dentro do contexto nacional e conclui afirmando que o Brasil “É campeão... da hipocrisia, da violência, da humilhação; É campeão... da ignorância, do desespero, desnutrição. É campeão... da covardia e da miséria, corrupção. É campeão... do abandono, da fome e da prostituição. Brazuca é bom de bola; Brazuca deita e rola; Zé batalha só trabalha; Zé batalha só se esfola”(13)
No Rapp nacional também temos exemplos maravilhosos como o grupo Facção Central onde entre tantas dou destaque às musical “Discurso ou Revolver” que trata do discurso x realidade das questões relacionadas a igualdade social em nosso país e conclui “A favor do inimigo repressão desinformação, o domínio dos dois caminhos pra revolução. Caminho um: a voz do povo aqui não é a voz de Deus. Se tua casa é de caixote de feira problema seu. Tanto faz sua filha no motel ganhando trocado, tanto faz seu filho com a doze matando vigia no assalto. Se vier pro asfalto fazer passeata, aí o PM te mata, te faz engolir bandeira e faixa. Caminho dois: desconhecendo cenário político, onde jogar granada? quem é o nosso inimigo? Entendeu por que não tem, escola pra você. Toma a uzi e me diz quem tem que morrer!!! Não adianta ser milhões se não somos um. Ação coletiva, objetivo comum. Discurso ou revólver não interessa a opção sem união é impossível a Revolução.” Ou ainda a música “Justiça com as próprias mãos” que retrata bem o cenário político Brasileiro nesses últimos 500 anos “De joelhos aos meus pés ta inofensivo, nem parece o monstro do horário político. Que com a dor do indefeso compra a Mercedes,coloca obra de arte valiosa na parede. Eu to aqui defendendo o interesse da favela, que quer teu sangue pra preencher, o vazio da panela...” e por ai vai dissertando o tema de forma que apesar de genial, é óbvia.
Uma ótima opção para quem quer conhecer o universo das músicas de protesto são as quatro músicas do grupo Face da Morte “janeiro, fevereiro e março”, “abril, maio e junho”, “julho, agosto e setembro” e “outubro, novembro e dezembro” que faz uma passagem pelos mais destacados movimentos e personalidades de luta e resistência no Brasil.
Esses são alguns exemplos de alguns gêneros musicais, porém esses também podem facilmente encontrados em todos os outros gêneros como no Rock, Ska, MPB, Reguae, Etc.
Todas as citações acima são excreções correspondentes a realidade de cada compositor e sua percepção sobre essa. São resultados de reflexões que buscam provocar, estimular o raciocínio para diversos temas, mostrar realidades diferentes, realidades não percebidas dada nossa resiliência (13) ou situações óbvias, mas que normalmente não as percebemos.
Dentro de um universo musical como esse é natural que o receptor se coloque, a depender de seu interesse por determinada área - como história, filosofia, sociologia, política, etc - a pesquisar em outras fontes os temas que lhe provocaram alguma sensação. Documentários, filmes e livros são caminhos naturais que essas formas de expressão musical levam seu receptor e daí por diante toda a forma com que esse sujeito passa a observar o mundo passa a se transformar. Seja na fenomenologia, onde se explica que em função do meio ou dos meios ao qual o sujeito está inserido o leva a ter uma percepção diferente da realidade e que, por tanto, inserido em um universo crítico, sua aceitação do cotidiano passará por uma processo muito mais sofisticado ou na neurociência onde se afirma o estímulo ao pensamento crítico estimula regiões cerebrais até então – nesse caso – menos estimadas e assim sucessivamente a demais áreas.
Porém, quando falamos de conteúdo, senso crítico e pessoas, não podemos esquecer que a subjetividade reina e a inserção do indivíduo em um universo dessa natureza não garante que esse siga exatamente para um caminho... bom. ... Frei Betto comenta, em seu livro “Sinfonia Universal” que além do conteúdo, o homem deve se preocupar com o recipiente. Nesse texto Frei Betto explica que o conteúdo que absorvemos – seja pela leitura, música ou outras expressões artísticas – são como água e a nossa subjetividade como o recipiente que da forma ao conteúdo então, não basta, segundo Frei Betto, se preocupar exclusivamente com o conteúdo mas também com a formação do indivíduo.
Há de se considerara, visto essa colocação, que dentro das micro sociedades em que vivemos, somos moldados desde nosso nascimento a ter um comportamento social. Esse, por sua vez, nos embute se teremos um comportamento mais egoísta ou mais solidário, se seremos mais agressivos ou mais pacíficos, entre outros e então podemos acreditar que a música, dentro de nossas vidas, pode servir tanto para alienação do indivíduo como para a formação de seu senso crítico, mas que essa por si só, não trará mudanças ou avanços necessariamente positivos e que o crescimento e desenvolvimento equilibrado do ser humano se faz necessário, não apenas para o indivíduo em si, mas para toda a sociedade.


01 - (Wikpedia - Funk)
02 - (Wikpedia – Funk Carioca)
03 – ()
04 – (http://www.clubedosamba.com.br) “...Naquela época, o samba era proibido e para que houvesse as festas, era necessário pedir uma licença na chefatura de polícia. A polícia vigiava as reuniões dos negros (tanto o samba como o candomblé). Porém, tia Ciata tinha o aval da polícia através do marido funcionário público de alto coturno. Foi neste ambiente que Pixinguinha, Donga, João da Baiana e Heitor dos Prazeres, ainda crianças, começaram nas tradições musicais baianas...”
05 - (http://academiadosamba.com.br/monografias/fabiopavao-1.pdf) "...Os grandes desfiles do sambódromo, que hoje atraem a atenção de turistas das mais variadas procedências, tiveram origem num período fortemente marcado pela insegurança, seja pela repressão policial ou pelas disputas entre os próprios sambistas. “Entre o Batuque e a Navalha” investiga, à luz das Ciências Sociais, o contexto cultural, social e político das primeiras décadas do século XX, buscando fatores que convergiram para associar a imagem das primeiras escolas de samba com a violência. ..."
07 – Autor desconhecido
08 – (http://www.cartacapital.com.br/revista/888/o-merendao-azeda)
09 – (http://www.brasil247.com/pt/247/sp247/232202/Funk-do-Geraldo-%E2%80%9Cpara-de-roubar-merenda-e-investe-na-educa%C3%A7%C3%A3o%E2%80%9D.htm)
10 - Acender as velas; Já é profissão; Quando não tem samba; Tem desilusão; É mais um coração; Que deixa de bater; Um anjo vai pro céu; Deus me perdoe; Mas vou dizer; O doutor chegou tarde demais; Porque no morro; Não tem automóvel pra subir; Não tem telefone pra chamar; E não tem beleza pra se ver; E a gente morre sem querer morrer.
11 - Hoje você é quem manda; Falou, tá falado; Não tem discussão; A minha gente hoje anda; Falando de lado; E olhando pro chão, viu; ; Você que inventou esse estado; E inventou de inventar; Toda a escuridão; Você que inventou o pecado; Esqueceu-se de inventar; O perdão; ; Apesar de você; Amanhã há de ser; Outro dia; Eu pergunto a você; Onde vai se esconder; Da enorme euforia; Como vai proibir; Quando o galo insistir; Em cantar; Água nova brotando; E a gente se amando; Sem parar; ; Quando chegar o momento; Esse meu sofrimento; Vou cobrar com juros, juro; Todo esse amor reprimido; Esse grito contido; Este samba no escuro; ; Você que inventou a tristeza; Ora, tenha a fineza; De desinventar; Você vai pagar e é dobrado; Cada lágrima rolada; Nesse meu penar; ; Apesar de você; Amanhã há de ser; Outro dia; Inda pago pra ver; O jardim florescer; Qual você não queria; Você vai se amargar; Vendo o dia raiar; Sem lhe pedir licença; E eu vou morrer de rir; Que esse dia há de vir; Antes do que você pensa; ; Apesar de você; Amanhã há de ser; Outro dia; Você vai ter que ver; A manhã renascer; E esbanjar poesia; Como vai se explicar; Vendo o céu clarear; De repente, impunemente; Como vai abafar; Nosso coro a cantar; Na sua frente; ; Apesar de você; Amanhã há de ser; Outro dia; Você vai se dar mal; Etc. e tal; Lá lá lá lá laia.
12 – (https://www.letras.mus.br/gabriel-pensador/96116/)
13 - capacidade de se recobrar facilmente ou se adaptar à má sorte ou às mudanças.
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